terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Toaletes e Guilhotinas: Uma epistemologia da merda e da vingança - A denúncia da crueldade com os animais por Ezio Flavio Bazzo


Por Ellen Augusta Valer de Freitas

Quando algo não tem nome, se apresenta apenas como uma sensação de mal-estar indefinível. Naomi Wolf, em seu livro ‘O mito da beleza’, mencionava que certas coisas na sociedade passam despercebidas pois não há quem as denuncie. E a denúncia é sempre uma espécie de grito em meio ao silêncio de uma humanidade acostumada.

Um escritor brasileiro, pouco conhecido, tem feito este papel de maneira brilhante, com um bom toque de humor ácido, que o cotidiano merece.

Ezio Flavio Bazzo é um escritor diferente, pois seus livros são encontrados na Internet, feitos de maneira quase artesanal e publicados de forma independente. Não há como traçar um estilo para suas obras, e deve ser esta a razão de não se tocar em seu nome nos centros literários. Cada livro é único, composto de mil estórias e confissões de viagens, mostrando de forma brilhante o ser humano da maneira como ele é. Uma biblioteca dentro de cada livro. Um acervo de milhares de notas de rodapé geniais.

Apesar de parecer triste à primeira leitura, ao se conhecer a obra do escritor, tem-se a idéia de uma forma bela de descrever a vida, reconhecendo a miséria humana e aceitando-a como parte do aprendizado, para quem tem a percepção da realidade.

Os livros são como uma espécie de literatura livre, onde não há compromisso com regras gramaticais, formalidades ou mesmo com o leitor. Há apenas a vontade de escrever. Portanto, aquele que leu apenas um livro de Ezio Flavio Bazzo não sabe o que são seus livros.

E muita gente não continua a ler, pois vê a si próprio neles.

Desde ‘Ecce Bestia’, que trata do assunto muito bem camuflado pela sociedade que é a exploração de animais para o sexo, mais comum do que se imagina, ou se quer imaginar. Ou ‘A lógica dos devassos’, que provoca a discussão sobre a pedofilia, um problema cercado de preconceitos entre os próprios pesquisadores do assunto. Ou ‘Manifesto aberto à estupidez humana’, espelho fiel da humanidade e do homem, um dos melhores livros que já li na minha vida.

A relação que temos com os escritores sempre é envolta em mistério, pois não conhecemos o autor das palavras que lemos. Muitos escritores estão mortos ou simplesmente moram do outro lado do planeta e nem sempre apreciam dialogar com os leitores. O máximo que acontece é o lamentável show de autógrafos. Mas este escritor é vivo. Tem um endereço de e-mail, responde aos leitores. Envia textos inéditos, manda presentes (livros!), está mais próximo do leitor e nos mostra, através deste comportamento, uma forma de ser muito bonita e diferente do aparente pessimismo que muitos vêem em seus livros.

Pois o livro ‘Toaletes e Guilhotinas’ fala de dois assuntos aparentemente divergentes, mas que têm muito em comum: a merda e a guilhotina. Além de um humor muito interessante, sobre a forma como lidamos com os excrementos, há a denúncia de que a humanidade possui em algum lugar de seus genes ou de sua psique um espírito sanguinário, que se empenha em construir mecanismos cada vez mais sofisticados para provocar o sofrimento alheio.

Sobre os animais, Bazzo escreve: “é desse fígado adulterado e canceroso que o patê (Foie Gras - em português: fígado gordo) da burguesia é feito. Oxalá lhe provoque pelo menos uma cirrose incurável ou uma Hepatite para vingar o martírio dos gansos. Quem visita uma dessas granjas fica impressionado com o desespero dos animais, que passam praticamente a vida toda sem sentir o gosto da comida. _ E os ecologistas? Perguntei-lhe. _ Não fazem nada. Pois o Foie Gras é para a França quase uma questão de Estado! O mesmo que o petróleo para os árabes e que o ópio para os birmaneses. A mim, esta pasta nojenta só revolta as tripas!”.

Sobre as execuções na guilhotina e a comparação com a morte de porcos, ele diz: “quem nasceu e cresceu no campo nem precisa ter boa memória para lembrar das execuções matinais, semanais e rigorosamente macabras. Os gritos de desespero do animal, um panelão com água fervente, o verdugo afiando a faca e três ou quatro vizinhos tomando chimarrão, fumando charuto ou simplesmente assistindo a execução. Fazendo um retrospecto desses tempos e desses porcocídios me dou conta de que o matador nunca é uma pessoa comum e que existem sujeitos que ‘sabem mais’ do que os outros no métier da morte. Lembro-me perfeitamente bem das mãos grotescas do homem que enfiava a lâmina na direção do coração dos porcos, e que eu estava sempre do lado dos suínos, torcendo para que eles, num último ataque de desespero, conseguissem devorar a mão ou pelo menos o joelho dos matadores.

Depois, assistia a carnificina e a retirada do coração mutilado, que o carniceiro exibia orgulhoso à ‘platéia’, exatamente como os verdugos faziam aqui, com a cabeça dos guilhotinados. Portanto, e por mais lírico que possa parecer, estou profundamente convicto de que uma civilização e uma sociedade que é contra a pena de morte para os homens, mas que segue matando todas as outras espécies para se alimentar, para vender seus chifres, seus dentes, sua pele, sua banha, seus hormônios etc, é uma civilização e uma sociedade, narcisista, chauvinista e hipócrita que, cedo ou tarde (mais cedo do que tarde), destroçará e comerá a si própria”.

E sobre a curiosa imagem de um livro de Jerry Rubin, que traz entre outras fotos a de uma mulher nua carregando uma cabeça de porco numa baixela: “vou me dando conta de como é impressionante o estágio de indiferença em que nos encontramos. Como é possível viver no meio de uma chacina e de um genocídio animal desses sem desesperar-se? Frangos, porcos, vacas, peixes, patos, rãs, camarões, coelhos, faisões, ovelhas, nenhuma espécie escapa à fome sanguinária dos homens, desses barrigudos inúteis que saem dos restaurantes de Montmartre palitando os dentes e arrotando”.
O comentário sobre uma gravura onde aparece um homem matando outro homem com um machado, e um homem com um cavalo observando a cena: “gosto dessa imagem, porque nela o ponto crucial de crueldade não está na lâmina do machado, nem nos lábios do homem que pratica a violência, mas curiosamente no olho do cavalo, dirigido de maneira ambivalente e fulminante para o sujeito que está prestes a ser assassinado. Esse eqüino estaria indignado ou apenas gozando com o massacre* e com a ruína de seu dono? O que impressiona realmente, é a rapidez com que se passou do machado à guilhotina e desta à cadeira elétrica, fato que evidencia o quanto o espírito assassino está incrustado nos séculos, nos punhos e no palavreado da espécie mais predadora que o planeta já teve notícias.

* Etimologicamente a palavra massacre vem do latim, macecre, um termo que está sempre ligado aos açougues e às carnifininas”.

E o melhor de todos é o comentário abaixo, de uma imagem de abatedouro de cavalos:


“Mercado de Paris, 1900 _ Abatedouro de cavalo (veja imagem acima)

Sem nenhum tipo de deboche, olhem atentamente para a boca, as narinas, as orelhas e o corpo inteiro do cavalo: ele emana mais (luz) e mais simpatia que todos os (matadores) que o distraem, que lhe tapam os olhos e que no momento seguinte arremessarão contra sua cabeça o golpe da marreta. Diante de uma dessas cenas, quem é que em sã consciência, consegue seguir confiando nos homens? Acreditando em suas leis? Dormindo a seu lado? Apesar de toda a demagogia humanista, não resta dúvidas de que os crimes cometidos nos abatedouros contra as aves, os porcos, as vacas e outros animais, é o mesmo que se comete sobre o cadafalso, nas cadeiras elétricas, nos postes e nos paredões contra os homens. A única aparente diferença está na racionalização que se desenvolveu sobre o assunto e na necessidade doentia e criminosa da humanidade em seguir massacrando as outras espécies”.

Seus livros podem ser encontrados no site http://eziobazzo.blogspot.com.br/

Bibliografia consultada:

Wolf, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres/ Ed. Rocco, 1992. 439p.

Rubin, Jerry. DO IT - Scénarios de la Révolution: Introduction par Eldridge Cleaver/Ed. Seuil. P 141.

Bazzo, Ezio Flavio. Toaletes e guilhotinas, uma epistemologia da merda e da vingança/ Brasília: Ed. LGE, 2008. 420 p. Primeira edição em 1995. Citações deste artigo nas páginas: 95, 128, 171, 208 e 306.

Bazzo, Ezio Flavio. A arte de cuspir (ou a dialética dos porcos) / Brasília: Lilith publicadora e Cia, 1994.

Bazzo, Ezio Flavio. Manifesto aberto à estupidez humana/ Brasília: Ed. LGE, 2007. 143p. Primeira edição em 1977/78, publicado em castelhano no México em 1979.

Bazzo, Ezio Flavio. Ecce Bestia – Libertinagem com animais/ Brasília: Narcisus publicadora & Cia, 2001. 163p.

Bazzo, Ezio Flavio. A lógica dos devassos: no circo da pedofilia e da crueldade/ Brasília Ed. Única. Moloch Publicadora Ltda, 2004. 159p.
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